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A triste vida de Ana Cristina

     Ana Cristina sempre foi diferente, desde a infância mantinha-se distante, vivendo em um mundo à parte fugindo o mais que podia da realidade. Ela era a quinta dos sete filhos do casal José e Antônia. A família era muito pobre, todos os filhos mais velhos trabalhavam para ajudar os pais com a despesa da casa, mesmo assim a renda era pequena e contavam com a ajuda da comunidade. Além de toda esta dificuldade, a convivência entre eles não era nada fácil, o pai além de muito rígido era extremamente violento, tanto com os filhos quanto com a mulher, e em meio a tudo isto viva Ana, com toda sua estranheza e hostilizada por todos.

     Apenas a mãe compreendia a reação da filha perante a vida, apenas ela sabia do sofrimento e das atrocidades que a menina sempre ficou exposta, além da vida miserável que vivia, Ana assim como a mãe era freqüentemente violentada sexualmente pelo pai, sem muita instrução e sem nenhuma voz ativa, Antônia sofria calada por ela e por Ana. Antônia fazia o que podia e o que não podia para também ajudar com as despesas, trabalhava de sol a sol para as famílias abastadas da cidade, e quando chegava a casa, depois de andar alguns quilômetros, pois, moravam em um pequeno casebre em uma vila afastada da cidade, ainda cumpria com os afazeres do dia à dia. Ela foi criada com muita rigidez, naquela época tudo era motivo de vergonha para a família e à mulher nada era permitido, alem de obedecer ao pai, ao marido e criar seus filhos.

     O pai determinava com quem a filha se casaria, sem se importar com o caráter do homem escolhido, o principal era passar as mulheres para as mãos de outro, que passaria a ser uma espécie de novo dono. E com certeza não foi diferente para Antônia, com a mãe aprendeu a não reclamar e aceitar todas as provas da vida com resignação, renúncia e submissão. Mas o que doía-lhe mais na alma, era ver o sofrimento da filha, e não poder fazer nada, vê-la dia após dia sendo violentada pelo pai sem poder socorrê-la, já tentou mas apanhou demais e com a saúde muito debilitada, provavelmente não sobreviveria à outra surra. Mas assim como todas as mães, Antônia sonhava com uma vida melhor para a filha, a pobreza em que viviam e a ignorância de seus pais a impediu de poder estudar, e a sonhar com um futuro diferente. Ela tinha plena consciência de que o pai homem bruto e sem nenhum amor no coração jamais a deixaria vislumbrar algo diferente na vida. Mas Antonia gostaria que a vida da filha tomasse outro rumo, de preferência que fosse bem diferente da sua.

     Ana Cristina era sua única filha, a garota não tinha amigos a não ser Rebeca, que era filha de uma vizinha que morava a alguns metros de distancia, mas Jerônima mãe de Rebeca não queria mais ver as meninas juntas, não gostava de Ana por ser diferente percebia que a menina nutria por Rebeca uma amizade com excessiva dose de cuidados, toques, carinho e até mesmo amor. Isto a preocupava muito, não parecia normal. Assim Antônia via a filha cada dia mais só e retraída. O que tornava tudo muito mais difícil era a lei do silêncio. Não poder compartilhar todo aquele sofrimento era extremamente cruel. Antonia lavava, passava e cozinhava em muitas casas, as vezes levava Ana que ajudava com o serviço, assim podia chegar mais cedo em casa e fazer todo serviço sem que o marido sua ausência ou demora. Mas ao contrário do que Antônia imaginava sua vida não passava tão despercebida. Em uma das casas em que trabalhava, a dona, esposa de um de um rico fazendeiro apesar da cultura de que a mulher não precisa estudar, não abriu mão da educação das filhas. Então o marido contratou uma irmã de caridade, que pertencia a um convento existente na cidade, delegando a ela plenos poderes para que cuidasse da educação das meninas, ele acreditava na rígida vida que as escolhidas por Deus levavam, sendo assim mesmo de longe, manteria suas filhas dentro dos valores que ele acreditava que fossem os verdadeiros.

     Emerênciana concordou de bom grado, mesmo porque para qualquer esposa não havia outra opção, mas ela sabia que se as filhas estudassem poderiam viver uma história diferente. Mesmo sem nunca ter ouvido o mínimo de reclamação de Antônia, Emerênciana sentia que aquela mulher e a filha sofriam muito, não era preciso bola de cristal para saber. Cheio de amor e caridade, seu coração pedia para que ela tentasse ajudar de alguma forma aquelas criaturas. Resolveu procurar Antônia e propor que Ana estudasse com Celina e Mariana suas filhas, as meninas eram mais ou menos da mesma idade e para Ana que era tão triste, e tão tímida talvez fizesse bem. Antônia com muito medo de se expor, no início relutou bastante, mais depois que Emerênciana conversou, explicou Antônia falou do marido, ela não queria nem imaginar o que ele faria se soubesse que a filha estava estudando. Mas aos poucos Emerenciana foi conquistando a confiança de Antônia, e a pobre mulher descobriu na patroa alguém com um coração enorme e que ela podia confiar. Enfim depois de muitos dias de conversa Antônia concordou, o combinado foi que Ana participaria das aulas nos dias em que fossem trabalhar na casa, assim José não perceberia nada.

     Ana Cristina apesar de não demonstrar qualquer tipo de reação, gostou da idéia. Ela sempre observou Celina e Mariana de longe, as irmãs não se davam ao trabalho de notarem sua presença, apenas Celina às vezes ensaiava um sorriso, mas aceitaram a companhia da menina nas aulas, pelo menos assim a carrancuda irmã Joana, teria mais uma para azucrinar a paciência.  O tempo foi passando e tudo corria na mais perfeita paz na casa de Emerenciana, porque na de Antônia e Ana nada havia mudado. Mas irmã Joana estava preocupada e procurou Emerenciana para uma conversa, a preocupação era o comportamento de Ana Cristina, e o que a incomodava mais ainda é que a menina estava conseguindo influenciar Celina. Depois de muitas voltas irmã Joana contou a Emerenciana que havia flagrado mais de uma vez certo tipo de carícias entre Celina e Ana, por ser uma irmã de caridade era difícil para ela falar sobre o assunto. Emerenciana por sua vez confessou a irmã que também notara alguma coisa, mas não achou nada demais, para ela era uma coisa normal entre amigas. Mas agora ela já não tinha a mesma opinião, então as duas resolveram conversar com Antônia e depois se preciso com Ana e Celina. Expor a situação para Antônia foi mais fácil do que as duas imaginavam, a pobre não tinha idéia do que significava tudo aquilo e inocentemente relatou o que havia perturbado Jerônima que chegou a proibir a amizade de Loreta com Ana. Com todo cuidado possível Emerenciana tentou explicar o que ela e a irmã  Joana concluíram e que se as evidencias fossem confirmadas, também explicou o que este problema significava.

     Antônia ficou triste, com muito medo e preocupação, o chão saiu-lhe dos pés. José com certeza mataria as duas. Emerenciana e a irmã Joana procuraram acalmar Antônia, dizendo que tentariam encontrar uma solução, mas era preciso manter segredo, pois assim como José a sociedade também não perdoaria nenhuma das duas meninas. A conversa com Ana e Celina seria mais difícil com certeza, mas não podia deixar de acontecer. Emerenciana, irmã Joana e Antônia, ouviram aterrorizadas a confissão de Ana e Celina, as meninas confirmaram todas as suspeitas e disseram que sentiam amor uma pela outra, sentiam a necessidade do toque, da carícia e do beijo. Para as três mulheres aquilo era um escândalo inaceitável, mas por outro lado tinham que admitir as duas eram corajosas.

     Mas era preciso tomar uma atitude rapidamente e sem alarde. Então irmã  Joana cogitou a possibilidade de levar Ana para o convento, ela poderia se tornar uma serva de Deus, assim salvaria seu corpo e sua alma. Para o pai José diriam que foi uma escolha da menina, em uma época onde o sexo masculino dominava totalmente, ter um filho ou uma filha em um convento ou seminário era motivo de orgulho. Emerenciana decidiu que pediria ao marido para viajar com as filhas, com certeza ele não negaria o pedido.

     As meninas não contestaram, também não adiantaria tudo já fora resolvido. Muito tempo se passou a tristeza nos olhos de Celina se tornou permanente. Chorando em sua cela no convento, Ana Cristina abria seu coração para Deus, dizendo que o pai a obrigou amar apenas as mulheres, por tratá-la tão mau, pelo desprezo e maus tratos dispensados por ele a mãe. E até este amor que era tudo que ela tinha de bom na vida tornou-se proibido. Com o coração em pedaços Ana se penitenciou até a morte, golpeando seu frágil corpo com grossas correntes que havia encontrado na dispensa do convento.  
 

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